O Mistério dos 1.300 Anos: Por que a cronologia de Gênesis pode ser mais antiga do que pensamos?
A maioria das Bíblias modernas baseia-se numa linha do tempo que coloca a Criação por volta de 4004 a.C. Mas manuscritos antigos e descobertas arqueológicas sugerem que a história bíblica pode ter perdido mais de um milênio no processo de tradução e cópia. O que aconteceu com estes anos?
Por Magno Lima
Qualquer estudante da Bíblia que já tenha consultado as notas de rodapé ou mapas cronológicos clássicos, como os do Arcebispo James Ussher, conhece a data: 4004 a.C. para a Criação e 2348 a.C. para o Dilúvio. Esta estrutura cronológica moldou a visão ocidental da história sagrada durante séculos. Ela baseia-se na matemática rigorosa do Texto Massorético — o texto hebraico padrão usado nas nossas Bíblias protestantes e católicas.
No entanto, uma análise mais atenta de documentos ainda mais antigos revela uma discrepância que não pode ser ignorada. Quando comparamos o texto hebraico padrão com a Septuaginta (a antiga tradução grega do Antigo Testamento) e o Pentateuco Samaritano, deparamo-nos com uma diferença impressionante: cerca de 1.300 anos separam as duas cronologias entre a Criação e Abraão.
Não se trata apenas de uma curiosidade matemática. Esta divergência toca no coração da história antiga, da apologética messiânica e da forma como entendemos a preservação das Escrituras.
O “Fenômeno Centenário”: Erro ou Intenção?
Ao lermos Gênesis 11 nas nossas Bíblias, vemos patriarcas como Arfaxade, Selá e Éber a tornarem-se pais surpreendentemente jovens, por volta dos 30 a 35 anos. Contudo, se abrirmos uma cópia da Septuaginta (LXX) — a Bíblia usada pelos apóstolos e pela igreja primitiva — a história muda. Lá, estes mesmos homens tornam-se pais por volta dos 130 a 135 anos.
A diferença é sistemática. Não é um erro aleatório de copista, onde um “5” se parece com um “2”. Para seis gerações consecutivas, a diferença é de exatos 100 anos.
Os peritos chamam a isto de “Fenômeno Centenário”. Ou a Septuaginta adicionou propositadamente 100 anos a cada patriarca, ou o Texto Massorético removeu 100 anos de cada um. A probabilidade de tal padrão ocorrer por acidente é estatisticamente nula. Alguém, em algum momento da antiguidade, editou a cronologia sagrada. A questão fascinante é: quem e porquê?
A Pista dos Manuscritos do Mar Morto
Durante muito tempo, a academia assumiu que o Texto Massorético (TM), por ser hebraico, era superior à tradução grega. A lógica era simples: “o original é sempre melhor que a tradução”. Mas a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto no século XX abalou essa certeza.
Estes fragmentos provaram que, no tempo de Jesus, existiam diferentes versões do texto hebraico em circulação. Algumas coincidiam com o nosso texto atual, mas outras alinhavam-se surpreendentemente com a Septuaginta. Isso sugere que a cronologia “longa” da Septuaginta não foi uma invenção dos tradutores gregos, mas sim uma tradução fiel de um texto hebraico antigo que era corrente antes do século I d.C.
O historiador judeu Flávio Josefo, escrevendo no primeiro século e com acesso aos rolos do Templo de Jerusalém, também utiliza esta cronologia mais longa na sua obra Antiguidades Judaicas. Se o texto “oficial” do Templo no século I continha os números longos, quando ocorreu a mudança?
O Motivo: Uma Batalha Teológica no Século II
A investigação histórica aponta para o século II d.C. como o momento da viragem. Após a destruição do Templo em 70 d.C., o judaísmo rabínico reorganizava-se em meio a grande turbulência, enfrentando o crescimento explosivo do Cristianismo.
Estudiosos propõem que a cronologia foi encurtada no texto proto-massorético por duas razões teológicas estratégicas:
1. O Argumento Cronológico do Messias
Na antiguidade, existia uma tradição forte de que o Messias chegaria no “sexto milênio” da história do mundo. A cronologia longa da Septuaginta colocava a era de Jesus precisamente nessa janela profética, um argumento que os primeiros cristãos usavam com eficácia. Ao reduzir as idades dos patriarcas em 100 anos, os escribas rabínicos efetivamente “atrasaram” o relógio cósmico. Na nova cronologia curta, Jesus teria chegado “cedo demais”, por volta do ano 4000 da Criação, enfraquecendo assim a pretensão messiânica cristã.
2. O Enigma de Melquisedeque
Talvez a evidência mais técnica, mas reveladora, envolva a misteriosa figura de Melquisedeque. A Carta aos Hebreus (Novo Testamento) argumenta que o sacerdócio de Jesus é superior ao de Arão porque segue a ordem de Melquisedeque.
Para combater este argumento, a tradição rabínica identificou Melquisedeque como sendo Sem, filho de Noé. Isso traria o sacerdócio de volta para uma linhagem conhecida. O problema? Na cronologia original (longa), Sem morre séculos antes de Abraão nascer. O encontro seria impossível.
Porém, na cronologia encurtada do Texto Massorético, a vida de Sem é “puxada” para a frente de tal forma que ele se torna contemporâneo de Abraão. A matemática foi ajustada para permitir que a teologia funcionasse: com os cortes nos anos, Sem sobrevive tempo suficiente para “ser” Melquisedeque, validando a resposta rabínica aos cristãos.
A Lógica Interna e a Arqueologia
Para além das disputas teológicas, a cronologia curta cria problemas de lógica interna no texto. No Texto Massorético, devido ao encurtamento das gerações, Noé e Sem estariam vivos durante grande parte da vida de Abraão. Sem viveria até os dias de Jacó!
Isso contradiz o tom das narrativas patriarcais e passagens como Josué 24:2, que descrevem os antepassados de Abraão como idólatras distantes no tempo, sugerindo que o conhecimento do Deus de Noé se havia perdido. A cronologia longa, ao espaçar as gerações, cria o distanciamento histórico necessário para o surgimento da idolatria e a necessidade de um novo chamado em Abraão.
Além disso, a cronologia longa harmoniza-se melhor com a arqueologia. Se o Dilúvio tivesse ocorrido em 2348 a.C., as grandes pirâmides do Egito e as primeiras dinastias da Suméria teriam de ser comprimidas num espaço de tempo impossivelmente curto após a Torre de Babel. Os 1.300 anos adicionais da Septuaginta oferecem o “respiro” histórico necessário para o desenvolvimento destas civilizações pós-diluvianas.
Conclusão: Redescobrindo o Tempo
Reconhecer estas divergências não diminui a autoridade da Bíblia, mas aprofunda a nossa compreensão de como ela chegou até nós. O Texto Massorético é uma testemunha fiel e vital, mas não é a única.
Ao olharmos para a Septuaginta e o Pentateuco Samaritano, podemos estar a vislumbrar a cronologia original de Gênesis — uma linha do tempo mais antiga e expandida, que resistiu às pressões polêmicas de uma era de conflito religioso. Recuperar esses 1.300 anos perdidos ajuda-nos a alinhar a fé com a história, oferecendo uma visão mais rica do desenrolar do plano divino através dos séculos.


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