Tradução/adaptação: Magno Lima
As razões pelas quais muitos judeus creram que Jesus era divino foi porque eles já esperavam que o Messias/Cristo viesse a ser um deus-homem. Esta expectativa fazia parte de uma parcela da tradição judaica. Os judeus aprenderam isto ao cuidadosamente lerem o Livro de Daniel e entenderem suas visões e revelações como uma profecia que iria acontecer ao fim do tempo.
Eu gostaria de mostrar que Jesus via-se a si mesmo como o divino Filho do Homem e farei isto explicando um conjunto de passagens difíceis do segundo capítulo do Evangelho de Marcos.
“Ao Filho do Homem tem sido dada toda a glória, soberania e domínio por todo o mundo“, como vemos em Daniel 7:27 “E o reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será um reino eterno, e todos os domínios o servirão, e lhe obedecerão“. Este verso vem uma estrutura de interpretação no qual o capítulo procura desmitologizar a narrativa do Filho do Homem, tal esforço não pode resistir ao poder dos versos anteriores no capítulo em que a divindade do Filho do Homem é tão claramente marcada. Em Marcos 2:5-10 lemos:
“E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados. E estavam ali assentados alguns dos escribas, que arrazoavam em seus corações, dizendo: Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus? E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre estas coisas em vossos corações? Qual é mais fácil? dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para perdoar pecados (disse ao paralítico)“.
Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para perdoar pecados. O Filho do Homem tem autoridade (obviamente delegada por Deus) para fazer o trabalho de Deus de perdoar pecados na terra. Esta reivindicação é derivada de Daniel 7:14, na qual lemos que aquele que é semelhante ao filho do homem foi dada “autoridade, gloria, reino”, na qual uma “autoridade que é eterna e não irá passar”. O termo que convencionalmente traduz-se por “autoridade” no novo testamento é ἐξουσία, que é exatamente o mesmo que se traduz no aramaico na Septuaginta, nominadamente, “soberania” ou “domínio”. Isto é, o que Jesus reivindica para o Filho do Homem é exatamente aquilo que foi concedido para aquele que é semelhante ao filho do homem em Daniel; Jesus sustenta sua reivindicação diretamente do antigo texto. De acordo com esta tradição então Jesus reivindica ser o Filho do Homem para qual a autoridade divina na terra, “abaixo dos céus” (Daniel 7:27), foi delegada. A soberania é a única que tem o poder de declarar exceções à lei. A objeção dos escribas, chamando ato de perdão de Jesus “blasfêmia” é baseada na suposição de que Jesus está reivindicando divindade através desta ação; daí a ênfase que somente Deus pode perdoar pecados, a que Jesus responde igualmente: a segunda figura divina de Daniel 7, um semelhante ao Filho do homem, está autorizado a agir como e para Deus. Trata-se de uma declaração direta de uma duplicidade da Divindade, que será naturalmente, mais tarde, a grande marca da teologia cristã. Ao longo do Evangelho, quando Jesus afirma ἐξουσία de realizar aquilo que parece ser uma prerrogativa da divindade, é que muito da ἐξουσία do Filho do Homem que está sendo alegada, ou seja, uma autoridade bíblica baseada em uma leitura muito próxima de Daniel 7:35. Vemos agora porque os rabinos posteriores, ao nomear esta visão religiosa muito antiga de heresia, se referem a ela como “dois poderes no céu.”
“O Filho do Homem é também senhor do sábado”
A questão de como ler Daniel 7 estava muito impregnada nas mentes dos judeus daquele período e não apenas aqueles que se tornariam seguidores de Jesus. Marcos, meio que diretamente e intencionalmente, está oferecendo a nós uma leitura próxima de Daniel. À sua luz podemos começar a interpretar uma das mais desafiantes e essenciais declarações do “Filho do Homem” no Evangelho. Eu coloco estes textos em um contexto inteiramente diferente daquele no normalmente é lido; neste novo contexto, certas pistas ser tornarão muito mais vívidas e reveladoras. É uma questão de olhar no texto de uma fomra diferente, que por sua vez revela conexões que ajudam a esboçar um quadro totalmente diferente do que está acontecendo, ou melhor, o que estava em jogo para o evangelista e seus ouvintes.
Esta interpretação de Marcos 2:10 como sendo uma leitura próxima de Daniel 7:14 me habilita a começar entender uma nova e intrigante declaração do Filho do Homem em Marcos 2, conhecido como o incidente de colher espigas/grãos no shabat. Nesta história, os discípulos de Jesus são descobertos colhendo grãos e comendo enquanto caminham no shabat por alguns fariseus que então desafiam Jesus quanto a esta violação aparentemente insolente ou arrogante do shabat. Jesus os defende vigorosamente. Esta passagem nos ajuda a entender como Jesus se via a si mesmo (ou é retratado como vendo a si próprio), ambos como divino Redentor e Messias Davídico ao qual os judeus aguardavam.
“E aconteceu que, passando ele num shabat pelas searas, os seus discípulos, caminhando, começaram a colher espigas. E os fariseus lhe disseram: Vês? Por que fazem no shabat o que não é lícito? Mas ele disse-lhes: Nunca lestes o que fez Davi, quando estava em necessidade e teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, no tempo de Abiatar, sumo sacerdote, e comeu os pães da proposição, dos quais não era lícito comer senão aos sacerdotes, dando também aos que com ele estavam? E disse-lhes: O shabat foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do shabat.” – Marcos 2:23-27
Existem muito problemas bem conhecidos colocados nesta passagem, que (como em Marcos 7, que irei apresentar) e é de enorme importância para a reconstrução da histórica religiosa judaica. O maior problema é a razão dos discípulos estarem colhendo no shabat; a natureza e significado de Jesus responder invocando a analogia de David; a conexão entre a resposta nos versos 27 e 28 com a que o Filho do Homem é Senhor do Shabat, e o Shabat que é feito para homem; e o significado e a conexão entre estes versos.
Jesus parece estar dando muitas justificativas para o comportamento dos discípulos; sua defesa baseada em um antigo princípio da halachah que o shabat pode ser violado pelo bem-estar do ser humano, ou isto tem algo haver com o status da messianidade de Jesus? Muitos estudiosos tem “resolvido” estes problemas ao assumir que o texto está interpolado. Esta explicação, ainda que insatisfatória, aponta para a tensão no texto entre a antiga controvérsia (que certamente está aqui) da halachah (legal) e uma transformação apocalíptica radical nas palavras de Jesus (que eu acredito também estarem aqui). O que me convence que há uma memória genuína da controvérsia da halachah aqui é o fato que que os elementos dos argumentos de Jesus serão encontradas posteriormente nas tradições dos Rabinos. Aqui um texto crucial para nosso propósito:
Rabi Ishmael Rabi Eleazar, filho de Azarias, e Rabi Akiva estavam andando no caminho e Levi Hassaddar e Rabi Ismael, filho de Rabi Eleazar filho de Azarias estavam andando atrás deles. E a pergunta surgiu entre eles: “De onde é que sabemos que a salvação de uma vida prevalece sobre o sábado?” Rabi Ismael respondeu: Eis que ele diz: “Se um ladrão for achado roubando e é atingido de modo que venha a morrer, o defensor não é culpado de derramamento de sangue; Mas, se acontecer depois do nascer do sol, ele é culpado de derramamento de sangue “[Êxodo 22: 2-3]. E isso é verdade mesmo se não temos certeza se ele veio para matar ou apenas para roubar. Agora, o raciocínio é a partir leve para o pesado: Assim como a matar uma pessoa torna a terra impura e afasta a presença divina para longe prevalesce sobre o sábado (no caso de alguém pego a noite e sendo achado roubando), ainda mais para salvar de uma vida!”. Rabi Eleazar deu uma resposta diferente:” Assim como a circuncisão que [salva] apenas um membro de uma pessoa suplanta o shabat, todo o corpo ainda mais!”. Rabi Akiva diz: “Se o assassinato substitui o culto no Templo, que suplanta o shabat, salvar uma vida mais ainda!”. Rabi Yose Hagelili diz: “Quando se diz ‘Porém guardem os meus sábados,” a palavra “porém” faz uma distinção: Existem sábados que você colocar de lado e aqueles que você guardar [isto é, quando a vida humana está em jogo, este suplanta o sábado]”. Rabino Shim’on filho de Menasya diz: “Eis que diz: Guardem o sábado porque ele é santo para vós; para vós o sabado é entregue e não vós para o sábado”. Rabi Natan diz: “Ele diz: E os filhos de Israel cumpriam o sábado para guardar o sábado para as suas gerações. Profane um sábado para ele [o que está doente], a fim de que ele possa guardar muitos sábados!”
(Mechilta, Tratado Shabat 1)
Na busca de distinguir a pregação “radicalmente nova” e “não-judaica” de Jesus, os escritores cristãos tem, normalmente, lido sua declaração de que o shabat foi feito para o homem e não o homem para o shabat ambos como indicando total oposição quanto a guarda das leis de shabat e a iniciação de uma religião de amor e não de casuística. Neste texto, entretanto, vemos que os próprios rabinos sustentam pontos de vistas muito próximos aos relacionados com a visão (mais expansiva, com certeza) do próprio Jesus, certamente não em contradição direta com eles. A temática da similaridade entre alguns destes argumentos e os argumentos de Jesus no Evangelho são impressionantes. Este paralelo torna-se ainda mais forte quando consideramos o que encontramos em Mateus 12:5, que não está em Marcos: “Ou não tendes lido na lei que, aos sábados, os sacerdotes no Templo violam o sábado e ficam sem culpa?”, assim provendo um paralelo ao argumento de rabi Akiva também a cerca do Templo.
Jesus poderia muito bem estar em controvérsia com os antigos fariseus que ainda não tinham articulado o princípio no qual salvar uma vida suplanta o shabat. Como meu colega Aharon Shemesh indica, semelhante era a opinião dos judeus da Comunidade do Mar Morto.
O ensinamento de Jesus a este respeito, no entanto, fica quase em oposição ao ensino dos tannaim mais antigos, que possivelmente aprenderam com Jesus, mas provavelmente não. O que é distintivo para o Jesus dos Evangelhos é, penso eu, a extensão mais apocalíptica destes princípios, a saber, a declaração do Filho do Homem, o Messias divino, que agora é Senhor do Shabat. Isto também é o que explica uma prováveis e potencialmente grandes diferenças entre a fala dos rabinos do evangelista (ou Jesus). As interpretações rabínicas, e sua halachah, tende fortemente a permitir a violação do shabat por um judeu para salvar outro judeu, enquanto que definição do dito de Jesus e suas consequencias parecem (mas não inescapavelmente) indicar que qualquer ser humano pode ser salvo no shabat. Se este é o caso, como parece, que os rabinos aplicam a lei apenas aos judeus, a extensão de Jesus dela é um produto de um momento apocalíptico radical no qual o Evangelho de Marcos foi escrito, um momento no qual a Torah não estava sendo rejeitada, porém expandida e “completada”- para usar a terminologia em Mateus – um momento no qual o Filho do Homem foi revelado e requereu au autoridade total. Ao Filho do Homem, de acordo com Daniel, foi verdadeiramente dado jurisdição sobre todas as nações e eu gostaria de sugerir cautela pois isso explica a extensão do sábado (e portanto, a cura no sábado) a eles. Aqui em Marcos encontramos um Jesus que está cumprindo a Torá, não revogando-a.
Os Evangelhos são um testemunho de antigos temas e controvérsias que mais tarde apareceriam na literatura rabínica. Desde que exista pouca razão para crer que os rabinos realmente lêem os Evangelhos, segue-se que temos testemunhas independentes para estas controvérsias. Os argumentos para violação do shabat por David, da afirmação que o shabat foi feito para o ser humano e do serviço no Templo constituem uma permissão para violação do sábado (este último encontrado em Mateus e não em Marcos) são todos mobilizados na literatura rabínica na intenção de justificar salvar uma vida no shabat (incluindo, sem dúvida, salvação de fome), apenas com a importante ressalva que a cura é necessária de ser feita no shabat, isto é, caso a condição seja de ameaça à vida, ou poderá ser se não for tratado. este encadeamento dificilmente pode ser coincidência; alguma versão inicial de uma controvérsia para permissão de cura no shabat é para ser encontrada nesta passagem. Precisamos lembrar que neste nível de interpretação, não encontraremos um particularmente radical, ou mesmo estranho Jesus “rabínico” lutando com alguns rigoristas no qual ele identifica como Fariseus. No entanto, essa abordagem deixa muito do texto inexplicável. Ele não explica de todo o argumento de David de ter alimentado a si mesmo e seus seguidores com pão proibido. Veremos agora como levar este momento textual a sério irá revelar uma outra dimensão da teologia de Jesus, de Marcos (cristologia).
Em suma, a minha sugestão é que um conjunto de argumentos de controvérsia a favor de permitir violação do sábado para a cura (agora uma prática aceita) foi revestida e radicalizada por mais um momento apocalíptico sugerido pela própria conexão com o comportamento de David. A história de David pode seguir por si só de qualquer forma. Assim como os rabinos enfatizam a fome de David e assim o aspecto de salvar a vida na história, justificando brechas na lei se uma vida pode ser salva (Talmud Palestino (Jerusalém) Yoma 8:6, 45:b), assim fez Mateus; Marcos, em contraste, entende a história como sendo privilégios especias do Messias, empurrando-o em direção ao que ele fez.
Por conta disso, a razão para a ausência do verso 27 em Mateus (e Lucas) é que a teologia messiânica de Marcos foi um pouco radical demais para os evangelistas posteriores. Eu acho que os problemas desta sequência de versículos são melhor desvendados se levarmos a sério o contexto seguinte de Marcos 2:10, como acabo de expor. Se Jesus (o Jesus de Marcos, ou o Jesus dessas passagens) proclama-se como o Filho do Homem que tem ἐξουσία em virtude de Daniel 7:14, então é perfeitamente plausível que ele iria reivindicar a soberania sobre o sábado também.
Estendendo a noção claramente controversa que a cura é permitida no sábado em virtude de vários precedentes e argumentos bíblicos, Jesus faz uma afirmação muito mais radical: não só a Torah quem autoriza a cura do doente de morte no sábado, mas o próprio Messias, o Filho do Homem, e é dada soberania para decidir como ampliar ainda mais e interpretar a lei do shabat. Isto é, sugiro, motivado principalmente pelo fato de que é David quem viola a lei para alimentar seus asseclas, então Jesus-o novo David, o Filho do Homem-pode fazê-lo para alimentar seu minyan. A questão não é certamente – como certos intérpretes os dão – que David violou a lei e Deus não protestou, se assim fosse, a Lei é inválida e qualquer um poderá violá-la. Pelo contrário, é porque David, um tipo do Messias, gostava de soberania para anular partes da lei, e assim também a Jesus, o novo David, o Messias. Isto não é um ataque à Lei ou em alegada legalismo farisaico, mas uma declaração apocalíptica de um novo momento na história em que um novo Senhor, o Filho do Homem, foi nomeado à legislar sobre a Lei.
Prestando atenção para a alusão implícita de Daniel em cada uso da expressão “Filho do Homem”, pode-se ver que em todas essas situações, Jesus em Marcos está fazendo precisamente o mesmo tipo de reivindicação sobre o fundamento da autoridade delegada para o Filho do Homem em Daniel como ele faz em Marcos 2:10-45 Isto permite-me propor uma solução para a sequência dos versos 27-28. Uma objeção poderia ser que o sábado “não está debaixo dos céus”, mas no céu e portanto, suscetível à transferência de autoridade do Ancião de Dias para aquele como o Filho do homem. Essa objeção é totalmente atendida pela afirmação de que o sábado foi feito para o ser humano; consequentemente, o Filho do Homem, tendo sido dado o domínio no reino humano, é o Senhor do Shabath. Na verdade, é uma parte necessária do argumento de que o Filho do Homem é Senhor do sábado, pois se o sábado está (como pode-se muito bem afirmar, com base em Gênesis 1) no céu, então a alegação de que o Filho do Homem, que tem soberania apenas na terra pode revogar suas disposições soa muito fraco.
Eu penso que esta explicação da conexão entre os versos 27 e 28 respondem muitos enigmas de interpretação que aparecem quando o verso 27 é lito como uma fraca declaração humanista, algo como “o shabat foi feito para o homem, então faça o que quiser”. Na minha perspectiva, em contraste, o que poderia ser um dito do judaísmo tradicional para justificar a quebra do shabat a fim de preservar uma vida é, nas mão de Jesus em Marcos, a justificação para uma ab-rogação messiânica do shabat. Esta interpretação tem a virtude, eu penso, de resolver os dois maiores pontos de atrito interpretativos no texto: a unidade de duas respostas de Jesus (ambas são referencias para seu status messiânico) e a subordinação de “Assim o Filho do Homem é senhor até do shabat”. Os argumentos halachicos na boca de Jesus aqui e no capítulo 7 são muito bem formados e bem atestados historicamente para serem ignorados; Jesus, ou Marcos, certamente sabia o seu caminho em torno de um argumento da halachah. Eles não são uma relíquia, mas representam, creio, temas reais do primeiro século e como tal, eles fornecem evidência preciosa que tais discursos e raciocínios ao redor da halachah já eram existentes desde então.
Porém, isto não é tudo que há aqui, é claro. Existem dois elementos que destacam a mobilização do Evangelho destes argumentos de uma controvérsia puramente halachica. A primeira é que em ambos os casos, Jesus usa o próprio argumento e a própria halachah como um sinal de leitura ética, um tipo de parábola (chamada assim explicitamente no capítulo 7); a segunda e mais interessante é que o elemento apocalíptico do Filho do Homem é introduzido aqui, como na história do paralítico, para trazer de volta a natureza messiânica, a natureza divino-humana, da soberania de Jesus como o Filho do Homem, agora na terra. A comparação com David, é claro, muito direta e sugere que o Redentor em Daniel 7:13-14 é realmente entendido como um rei messiânico, filho de David. Eu encontraria aqui, entretanto, clara evidencia da identificação do Messias Davídico com o Filho do Homem, uma identificação que claramente não requer uma conexão genealógica entre os dois, pois para o Filho do Homem é uma figura inteiramente celestial que torna-se um ser humano. Houveram outros antigos judeus ao longo do tempo anteriores aos Evangelhos que também leram Daniel 7 daquela forma que eu estou sugerindo. Nesta leitura, Marcos ao dizer sobre o Filho do Homem ser o Senhor do Shabat é precisamente um movimento escatológico radical, porém não é um que é constituído de um passo para fora da larga comunidade israelita ou mesmo judaica. Se a visão de Daniel agora está sendo cumprida por Jesus como uma encarnação do Filho do Homem, alguma mudança radical é exatamente o que se esperaria durante o fim dos tempos. A soberania, como somos ensinados por políticos teóricos modernos, é de quem pode fazer exceções na lei quando julgá-las necessárias ou apropriadas. É exatamente para semelhantes julgamentos que ao Filho do Homem foi dada a soberania. A soberania é expressa ao estender a permissão garantida aos judeus em violar o Shabat, para salvar vidas de outros observantes do Shabat, pelo Messias Jesus ao incluir todos humanos. Eu argumentaria que esta figura divina a qual autoridade é delegada é um rei Redentor, tal qual a passagem de Daniel claramente declara. Assim ele assegura-se da identificação com o Messias Davídico, como ele é no Evangelho e também na literatura judaica contemporânea não cristã como Enoque e Quarta Ezra (Esdras). O uso do termo “Filho do Homem” nos Evangelhos une-se com a evidência de usos semelhantes em outros textos judaicos antigos para nos levar a considerar que este tempo foi usado desta forma (e mais importante, o conceito de uma segunda divindade implícita) como uma moeda comum – a qual eu enfatizo que não significa incontestado ou universal – do judaísmo já anterior a Jesus.
De acordo com Marcos (e em Mateus mais ainda), longe de abandonar as leis e práticas da Torah, Jesus foi um leal defensor da Torah contra aquilo que ele percebeu serem ameaças a ela por parte dos Fariseus. Longe de ser um judeu marginal, Jesus foi um líder de um tipo de judaísmo que estava sendo marginalizado por outro grupo, os fariseus, e ele [Jesus] estava lutando contra eles como inovadores perigosos, eles haviam mudado as leis da Torah.
Sobre o autor:
Daniel Boyarin (דניאל בוירין; nascido em 1946) é um historiador da religião. Nascido em Asbury Park, New Jersey, ele tem dupla cidadania dos Estados Unidos e de Israel. Treinado como um estudioso do Talmud, em 1990, foi nomeado Professor de Cultura talmúdica no Departamento de Estudos de Retórica do Oriente Médio, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, cargo que ainda ocupa.
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